O novo blog, enfim, está no ar. http://oplayground.zip.net/
3:54 PM -
terça-feira, novembro 21, 2006
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Meninos de Picasso
Para Fred
Nessa manhã ninguém dorme. Nem quando chegam as visitas. Nessa manhã tudo some. Mesmo quando as mães estão nas coxias. Quem dera pudessem ver seus niños assim pintados, pequenos palhaços de costura mal feita, estreitos na retina cotidiana que tudo pede tão direito, sem defeito. Úteros prolixos. São crianças tortas. Ninguém se importa. Alguém contou essa história. De crianças semimortas. Repito: são crianças tortas. Na tela do grande artista. Que duvida de certas anomalias. Na remenda da genética arredia, o pintor se assustaria. Se visse com seus olhos os buracos no lugar das narinas. Braços sem geometria. Arte que engana a fantasia. Crânios gigantescos. São grotescos. Esses seus meninos. Que pediram alforria. Foram parar na casa de outras tias. E não recebem visitas. Quase nunca. Mas diga, senhor pintor, quem consegue ver tanta bagunça? Troca-troca de recusas, orelhas avulsas, que criança dizem, é para ter só beleza. Quem é que consegue ver clareza nesse emaranhado de tristeza? Esses meninos daqui não têm paredes. Nem servem de enfeites. Os meninos de lá são quase felizes. Porque não entendem o que dizem as mudas tintas. Os daqui, caro senhor, só brincam de juntar as peças. Não aceitam promessas. Enquanto algumas mães esperam nas coxias. E estão sozinhas. Infelizes como suas crias.
5:57 PM -
PORTFÓLIO
Começou no dia 18 de novembro (sábado passado) mais um projeto muito bacana do Itaú Cultural. Chama-se Portfólio. Nele, participam a convite do Itaú e de seus curadores, um(a) fotógrafo(a) e um(a) autor(a) iniciante, para dialogar com as imagens. E é aí que eu entro. E fiquei muito feliz com o convite. Ele, Rodrigo Braga, do Recife, com suas imagens belas e perturbadoras. O texto é meu, feito especialmente para esse projeto. A exposição fica até 21 de janeiro e quem puder, apareça.
O Itaú Cultural fica na Avenida Paulista, 149. * Foto tirada da fachada pela minha maninha Fernanda Prats.
* E não, o texto acima não é o da exposição.
4:09 PM -
quarta-feira, outubro 18, 2006
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E NÃO É QUE DEU?
A noite foi linda. Juro. Quase nunca minto. Não dessa vez. Eu, feliz da vida. Não deu para esconder. E por que eu esconderia, não é mesmo? Euzinha, rodeada de grandes amigos. Numa redoma mesmo. De gente. Gente que gosto muito. Pessoas que eu não conhecia, que já andavam por aqui. Gente de longe, enfim tudo muito tranqüilo, muito certo. Esse post aqui só para dar notícias. Boas notícias. Post cheio, repleto de "obrigadas" às editoras Alaúde e Eraodito, ao meu querido amigo Marcelino Freire (que inclusive escreveu a apresentação do livro), à linda capa do Samuel Parrela (que também fez a arte desse blog), ao Eduardo Rodrigues pela finalização de arte (e pela paciência e grande ajuda), minha sister co-produtora Fernanda Prats, ao Mario Domingues pela tradução/versão de um dos meus textos no livro para o latim, à bela Chyara Benatto pela ajuda na revisão antes mesmo do livro virar livro, ao MarceloCaetano pela minha "alcunha" de dona, ao Sebo do Bac (e grande Rosângela), aos leitores que sempre estão por aqui e ao Stocker pela força e por me aguentar todos os dias.
Respondendo a alguns e-mail sobre a venda do livro. Você pode comprar através do site do Bactéria: www.sebodobac.com (procurando pelo título ou nome da autora - inclusive já estão disponíveis também os outros 3 títulos da coleção) ou através do e-mail: vendas@sebodobac.com ou também pelo site da Livraria Cultura: www.livrariacultura.com.br
Eles entregam para todo o país. O preço do rebento? R$ 10,00(fora as despesas do correio).
Volto a postar novos textos. Prometo.
6:08 PM -
quarta-feira, outubro 04, 2006
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QUANDO OS OVOS CAEM DOS NINHOS I
Quem dera o homem tivesse recolhido os restos que deixara ali no chão. Todo dia um pedaço de dedo, uma unha suja, um punhado de cabelos. Ossos amarelos, meio gastos, cárie e culpa nos dentes. No meio deles poucas folhas, só os fiapos, carne de segunda, às vezes carne de gente. E não tinha nenhuma higiene ou assepsia, no retalho ou na lida da cozinha. Era a pressa do desleixo, o rádio sacolejando na batida do martelo, cinza e graxa, dinamite na panela, pimenta de cheiro.
De fato era um porco. Nunca tivera modos. A criança muito menos.
Bastava o homem virar as costas, como num consentimento, que o garoto ia logo para o chão lamber os ossos e as pontas dos dedos. Cagava-se todo e nem era de medo. Ria mesmo por pirraça, paredes lameadas, o arremesso. E chutava o homem quando queria outro naco de carne, esperneava, cuspia e xingava. Feito gente grande.
De fato era um garoto. Nunca tivera modos. O pai muito menos.
Bastava o menino virar as costas, como num pressentimento, que o pai ia logo separando os melhores pedaços, escondendo-os nas gavetas, nos potes, nos armários, dentro dos sapatos, embrulhados nos lenços. E gozava do menino, no menino, por desgraça, sol, cachaça, quem sabe os santos já não fossem os mesmos. Feito prece que desata. Feito nó. Feito desapego.
De fato era um pai. Nunca tivera modos. A criança muitos medos.
7:45 PM -
terça-feira, agosto 15, 2006
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POR ENQUANTO BASTA
O copo na medida incerta. Borda bêbada tropeçando no lábio que não pára de mexer. Para falar merda, cem pares de ouvidos atrás da porta que não bate nem fecha, líquida parede desconexa nesse discurso com pobres rimas, peles finas, ácidas retinas, grossa saliva desfilando a gramática porca, arrebitada, entre novos livros, tricôs metidos, homenzinhos trovadores. Eis os novos pensadores no remendo das frases feitas, jantares requentados sobre as mesas das salas fechadas, intransitáveis. Os corredores estreitos para o povo que mendiga olhares. Os clássicos desfeitos pela sabedoria de uma safra de gente que se agita, que quer ser na fantasia alguém que se orgulha das telas inquietas hipnotizando gentes cretinas. Não são diferentes das loucas que aqui habitaram um dia. Em suas gaiolas enfeitadas, cacarejam tristes travestidas de felicidade. Ao contrário daqui, estão enfermas e não sabem. Tomam grandes doses de mediocridade. E batem na porta todos os dias. Querem ser internadas. Abrigadas. Disputadas. Coroadas. Como num conto-de-fadas. Não temos mais vagas. Da porta para dentro é tráfego certo, regras na cara. Aqui ninguém apunhala pelas costas. Aqui já foi Constantinopla. E pouco importa a casta, a procedência. Falamos de indecência. De culpa. Das perdas. Somos sim esquizofrênicas. Somos uma, duzentas. E temos um batalhão de gente com força nas pernas, na língua musculosa. Na bagagem teórica da práxis. Também falamos bobagens. E vestimos os fantasmas. É para isso que servem os quartos-fortes, as estantes de pernas bambas, a sangra. É verdade. O mundo às vezes é linguagem. O mundo é cada no cubículo que nos cabe. Algumas de nós quase nunca saem.
8:26 PM -
quinta-feira, julho 27, 2006
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JOÃO E MARIA
Toda vez é assim: pede, ela fica. Diz, ele entende. Toda vez é essa corrente. Que não larga nem desata, parece até prece bem feita, linha que prende na carne como quem desdenha da costura alheia. Dois em tudo, zero infinito, matemática que desobedece a regra lógica, músculo de veias grossas, pés de meias que se perdem, cores diferentes nos pés dos pares imperfeitos. O mundo deles é estreito. E estica feito corda em brincadeira. Derradeira. Como amantes moribundos, que riem alto, sabem tudo. Mas ninguém entende. Dente no dente. É assim que andam juntos, quase um, quase dez, desavergonhados. Escancaram os afetos perdoados. Dançam no meio da rua como se perdessem a compostura, duas pobres criaturas a andar sem paradeiro. Bola do mundo a girar sem eixo. Em desleixo.
Andam aos segredos. Curtos nomes que se agregam, sobrenomes que se deixam. Mãos em braile às avessas. Ela abandonou as facas. Ele ganhou três beijos. Ainda são crianças, curtas calças, finos dedos. Saia que levanta sob as nuvens ensolaradas. Não se importam com as risadas, os cochichos, os bocejos. Brincam de espadas que não machucam em nada, é bobeira, é realejo. Fitas que prendem os cabelos. Que já não se penteiam. Abandonaram os espelhos. Sem muletas nem defeitos. Confiam na retina alheia. E caminham como se tudo fosse uma grande brincadeira. De gente grande. E dispara no grande fôlego dos amores que já nascem tortos, que almeja grandes vôos, meio ânsia, meio vômito. Uma ânsia que parece verdade. Que eles chamam de felicidade. E a cidade adormece. Nos pastéis das tintas cores. Na mão do desenhista a achar caminhos paralelos. Mas que insiste na linha que desemboca no infinito. É um risco. Enquanto segura forte a mão dela. Que canta. A melodia que lembra uma cantiga sobre dores e brinquedos. Sobre olhos que se viram inteiros. Só de olhar para ele. Hoje chove sobre alguns canteiros.
10:40 AM -
quarta-feira, junho 14, 2006
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PASSARINHOS
- Já disse, sou inocente. - Sim, garoto. É o que todos dizem. - Machucaram meu joelho. - É o que todos dizem também.
O menino abaixou a cabeça enquanto o homem da jaqueta cinza o observava. Já tinha visto outros garotos como aquele e sabia exatamente o que um pedacinho de gente como aquele era capaz de fazer.
- E então, vai falar ou não hein, seu putinho? - Falar o quê? Eu não fiz nada! - E a menina? - Eu juro que não tive nada com isso... O senhor precisa acreditar em mim... - Que senhor o quê, garoto! Eu quero é saber o que você fez com o resto da menina - Resto? E eu vou saber? Eu estava lá com os outros garotos e não tinha menina alguma! - Sim, sim... E esse arranhão aí no seu braço? Vai dizer que foram os outros garotos também? - Olha, eu não sei que arranhão é esse. Pode ter sido durante o jogo...
O homem levantou e tirou o lenço do bolso da calça. Passou-o pela testa e pensou mesmo em desistir daquilo tudo. Poderiam mandar outro cara em seu lugar para que terminasse o serviço. Devia ter uns treze anos aquele pobre garoto. Um dia quente desse e ele ali tentando espremer um putinho que estava preste a se mijar todo. E não era que às vezes achava mesmo que ele era inocente? Pensamentozinho ordinário aquele. Isso só dificultaria as coisas. Luiza era o nome das duas. A dele iria fazer sete na semana que vem. A outra tinha onze. Eram bonitas, as duas. Poderiam ter sido irmãs, ele ainda resmungou sozinho. Assustado com tal pensamento. Olhou de novo para aquele garoto franzino, com o braço arranhado, os joelhos fodidos e pensou na tal mochila. O menino tinha olhos assustados. A mochila. Quem sabe mesmo fosse inocente. A mochila. Um marmanjo sim poderia ter feito aquilo com a menina. A mochila. Uma mãozinha sem unhas. A mochila. Uma fotografia no álbum de família. A mochila. Lindas Luizas. E suas perninhas. E suas calcinhas. A mochila. O cheiro fresco das meninas. Perninhas abertas-bailarinas. Galopando em colos de família. A mochila. A seis metros do gatilho. A estourar os miolos de passarinhos. Na mira dos pais de família. Pela tranqüilidade clandestina do livre acesso aos parques de diversão.