As correspondências aqui demoram a chegar. Não é fácil e você bem sabe. Eles vasculham antes qualquer coisa que nos cheguem nas mãos. E é horrível pensar que outras mãos e olhos podem alcançar as tuas palavras antes mesmo de mim. Mas me parece que certas invasões são necessárias. Já falamos sobre isso, lembra? Enfim, você voltou. Em lembrança. Para me recordar daquele dia sujo, daquele café indigesto, entre sal e rímel em excesso. Nos meus olhos que pouco abrem. De gatos. E eu estava tão doente quando você chegou para cuidar das minhas fendas de meia-calça preta, a queimar os fios soltos com seu isqueiro e dizer que gostava daquela minha dor. Que era bonita. Te convidei pra ir para o INFERNO e você topou. De cara. Para lavar meus cabelos numa pia minúscula porque fediam. A enxofre. A tirar toda tinha das minhas unhas dos pés. De vermelho. Para dizer que sem tudo aquilo eu ainda parecia mais jovem, mais jovem, mais jovem. A me esparramar naquelas tuas mãos de papel. A tremer. E só. Só?
Ora não me faça rir desesperadamente dessas tuas linhas tão contidas. Teu sarcasmo é sacana, mas isso ninguém pode saber não é? Homem casto, culto e velho. Que agora tem alusões sobre as cidades. Eu gosto é de sacanagem e você sabe de cor e salteado. Bem, você também. De pedofilias. Desculpe, mas isso não era para dizer não é? Que aquela coisa que não pode ser dizer aqui sou eu. Será? Não sei. Ando cheia de dúvidas. E de imagens. Todas dentro da minha cabeça. Em epilepsia. Ataque noturno, corpo em 40 graus de temperatura, tosse seca, garganta de areia. Esperando você me tirar daqui e te cuspir inteiro.
Mas você saiu em fuga e rota incerta. E resolveu visitar outras cidades. Que ainda são todas minhas. Em cada poste desse, em cartazes colados você vai me ver em outdoors, nos bancos das praças, nos hospitais. Porque eu sou agora a tua doença. Sem cura. E quando você voltar ainda deixo guardadas intactas as minhas últimas três cidades. Com lugares para se colorir a pele alva. A minha. Com agulha muito fina. Porque você é da alta costura. A me fazer ler em voz alta toda aquela história de Colônia Penal, de bruços, sem roupa e gaguejando entre uma dor e outra. Mas nessa cidade, toda cor é viva e tem cheiro de anilina. De ficção.
Que é pra mostrar a partir de agora, em praça pública, circo e pão que toda espera tem seu preço. O valor? Sacanagem pelas costas. As minhas. Cidade onde as leis que regem são de nove dentes cravados no baixo ventre e uma palmatória. Para esse nosso apetite insaciável. Dá vontade de viver aqui não dá? Com tantos cortes, tantos sons, tanta fauna. Para brincarmos de inversão. De papéis. Para brindarmos o dia em que você me tirou do INFERI para me botar numa parede sem ao menos me dar um único beijo. Na boca.
Daqui, desse lugar onde a cidade é de ninguém, fico a contar os dias de uma nova salvação. Sem cafés e xícaras. Das verdades confortáveis só me resta essa: uma foto tua pregada aqui nessa parede, que é para não me deixar esquecer que você me fez - numa noite de chuva fina: ficar de bruços numa pia assim exposta, com todas as portas abertas para quem quisesse ver. Pra te olhar agora ainda em febre alta, aqui nessa parede torta, estranhamente assim: nu, velho e com um pau morto entre as pernas. Sim, é isso que eu gosto em você.