Um dia posso te contar sobre como começam e terminam histórias. Será que você vai querer saber? Acho que vai. Mas posso te adiantar sobre as tais valas ou lacunas como muitos gostam de chamar. Que é exatamente um espacinho entre o que a gente sente e o que o outro faz com isso que a gente dá esperando - mesmo que não se fale - em troca. Porque tudo é na base do escambo e você já deve ter escutado isso na escola. O que talvez ainda não saiba é sobre a mobília escondida atrás dessa pele nossa, coisas que a gente não enxerga assim tão de perto. E nem adianta desfilar os por quês pro doutor que o que ele vai te dizer não importa. Não para essa nossa conversa. Nem para as tias da tua escola. Que essa tia aqui é de outra cadência. O que você precisa saber é sobre um tempo em que tudo cheirava a querosene. Sobre uma certa matança há exatos dez anos. Em que a vontade de dois era muita, era tanta que meteu fogo em toda gente. E só sobraram eles fatigados pela luta, enjoados pelo cheiro dos defuntos, e com faíscas nos olhos. E foi um espetáculo bonito de se ver. Mas ela ficou doente, com a cabeça quebrada. Em estilhaços. Como esse vidro aí que se quebrou. Tem um nome para uma coisa dessas, mas aqui nesse lugar é melhor nem dizer. É palavra proibida. Mas a coitada ficou se arrastando dias e noites. Não comia, não falava lé com cré. E derretia só de lembrar daquele fogo. Dos bastonetes a dançarem como se fossem pirilampos e a dizerem que tudo tinha que acabar em festa. Dos mortos. Que nem se faz lá no México. Que um dia você vai conhecer. E ele conseguiu se libertar de todo aquele fogo para conhecer novas danças, novos amores, se destituir das dores e voltar a ter aquele velho sonho que ela nem esperou vingar. Não porque não quis, mas porque não dava conta da envergadura, de ver num rostinho miúdo tanta ternura a serem servidos anos depois para o próprio pai comer. E entre as lacunas, você nasceu com seus cadernos de pintura, suas canetas coloridas a se esconder da chuva, que filho de fogo não pode mesmo se molhar. Deixa eu te perguntar: além do seu nome, você também gosta de ler?