sexta-feira, setembro 16, 2005 ---

PRETÉRITO IMPERFEITO


Tinha neblina na retina, cheiro de carniça, cachaça já nas vísceras e um composto de vitaminas vencido no bolso. Tinha mãos de argamassa, barras roídas de traça, dente fora do siso, joelho esfolado de chão, dor nas juntas, juntas mal coladas. Tinha foto dos filhos, enroladas em maços imprecisos, maços de cigarro retorcidos pelo mau tempo lá fora. Tinha cansaço emplacado nas omoplatas, nomes diluídos nos bolsos, em papéis avulsos, em dobras sem nexo já perdidos na memória. Em desuso. Tinha vermelho cor de sangue incrementando a camisa, denunciando um Pára, moço, pára pelo amor de Deus! Em Deus já desconfiava. Tinha algumas linhas desenhadas por unhas em volta do pescoço, um vento forte na nuca, um jogo de sinuca em bico de seios pequenos. Tinha vontade de ser marinheiro. E de pequenos os meninos todos já deviam estar crescidos, acrescidos de certa raiva, de certa mágoa, de esgotamento. Tinha uma boceta a dizer com os lábios escancarados que era boa demais para ele. Limpa demais para ele. Esnobe demais para ele. E tinha gemido, choro de fêmea sem cio, remédios que ele tinha que ter tomado, que ele tinha que ter comprado, que ele tinha que ter trabalhado, que ele tinha que ter sabido. E tinha um golpe, um corpo mole, um abandono, um acorda nunca mais. Que lembrava que ele tinha que ter parado um pouco antes, um pouco muito, ou pouco nada. E tinha que ter deixado tanta amargura, tanta pressa de tanto nada ter. Que sanidade agora se mede em atos públicos, em centímetros cúbicos, decibéis estúpidos no tórax a dizer: Que ele tinha que ter parado (...) Que ele tinha que ter parado(...) Que ele tinha que ter parado! Um dia já quis ser louco. Hoje já não tinha mais razão de ser.
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Enquanto o senhor do quarto não vem...: www.quartointeiro.blogspot.com


1:41 AM -

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