quinta-feira, outubro 27, 2005 ---

RESSACA DE (A)MAR


- DA BREVE SÉRIE "NÃO MATARÁS" -



"Aquele que não perde a capacidade de enxergar o belo nunca envelhece".
- Franz Kafka -




"Pai me leva um dia para conhecer o mar?"

Corpo fechado e mar aberto. Para entrar de corpo inteiro. Em dia de sol a figurar no céu ovo estrelado, coberto de ouro, a dizer que a vida - com aquele mar todo - devia ser sempre assim: linda e salgada. Com gosto a pregar na pele e areia a esfolar os cotovelos. Não fosse assim, não tinha graça. Nenhuma. Que era a primeira vez dos olhos a verem o mar. Já moço feito, barba na cara, peito a estourar de ar e vontade de beber aquela água toda. E se perder em todo horizonte de dar euforia, que aquilo tudo ia dar onde? Quem sabe a morte também fosse assim, com som de mar. Bem que podia. Pra embalar a partida com aquele barulhinho de onda a quebrar em pedra, de sacolejar um tiquinho, pés a afundar na medida, calorzinho nos cabelos. E agora naquela água ali, tudo era perfeito. Uma onda aqui, outra lá. Mais uma. E outra. Um pouco mais forte. Mais forte. Mais forte. A engolir um pouco d´água, a perder o equilíbrio. Em pé. A dar tempo ainda de ver o sol. Mais uma, agora a passar rasteira nos pés como jogo de futebol. Era divertido. E dava, ainda dava para respirar. Mais outra. A cabeça a pesar com veemência sob os pés do mar. Que de água salgada uma hora o corpo enjoa, não vê mais graça, e pede, suplica pra parar. E nada, nada de nadar, nada de parar, esse mar que ele amou tanto, amava tanto, do verbo intransigente mar.

Que jogava bola, ia para escola, pra ser escoteiro, surfar um dia em terra-mar, beijar menina na boca, com língua solta, trepar à tardinha e conhecer o que era amar. Plantar árvore, escrever livro, fumar baseado escondido, tirar diploma de doutor ou virar bombeiro, quem sabe fosse ator ou do mercado financeiro. Quem sabe onde aquele horizonte ia dar? Que ainda era menino, bem menino, não tinha feito seis ainda e aquilo nunca fora o mar. Era balde de água fria, de doce, só a ironia e onda que afundava era a mão do pai. A dizer que amor era aquilo que naufragava em sonho, "pára, pai, pára pai". E o amor nunca mais lhe deu ouvidos, de perninhas assim para o ar. A entupir os pulmões de menino com sal de lágrima, em soro ali caseiro, que o amor desconhece oxigênio. A cabeça a afundar naquele balde, em quintal de casa, ninguém ouvia, niguém falava. Mais uma. E outra. A mão do pai impiedosa. A mostrar somente a ressaca e aquele balde que do mar, só o breve cheiro de maresia. A fechar os olhinhos e pensar: quem sabe a morte também fosse assim, com som de mar. Bem que podia. Bem que podia...

"Pai, me ensina um dia o que é amar?"


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Dona Estultícia ainda passa os dias em Buenos Aires e respira, respira, respira...o dono desse quarto:
www.quartointeiro.blogspot.com


8:20 PM -

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