Ouviu-se em Ramá, gritos, soluços e lamentos. Raquel não quer consolar-se porque chora seus filhos mortos.
(passagem de São Mateus)
Seis meses e quatro dias inúteis. Esse é o prazo que você me ofertou. Nessa matemática cronológica - pelas nossas previsões - mais cinco ou seis dias isso acaba de fato. E por que é que cá estou a fincar o piso com os dedos dos pés como se eles tivessem tanto medo de sair daqui? O meu vôo será raso você sabe. Não me sinto ainda em condições de planejar coisas, de atrever grandes saltos. Ando meio avessa às quedas. Como pode perceber, não sou tão a mesma. Talvez nunca tenha sido. E isso é o que me preocupa nesse exato momento. O reconhecimento. O que acontecerá se as tuas narinas não reconhecerem mais esse cheiro? Que o tato também pode falhar e não obedecer mais às curvas, frear antes da hora e eu... bem eu, como mosca tonta, branca do pouco sol que aqui nos foi permitido, poderei sucumbir aos teus desatinos, a tua voz de reprovação e aos teus olhos cheios de tantas imagens - das quais muitas delas eu fui capaz de lhe dar uma a uma.
Que de escrita porca você já insinuou tantas vezes, do meu rebuscamento com as palavras, do meu frenesi imagético recaindo sempre sobre o mesmo tema. Que do meu ritmo ora acelerado, ora com algumas pobres rimas eu tenho sã consciência. Não é uma ironia? Não, meu caro, é uma escolha. E penso agora que talvez eu venha sentir falta daqui. Desse lugar imundo, dessas pessoas todas a gritarem por entre os corredores. Que de vozes eu tenho assim vasta filosofia. Dos Rivières, das Medéias, das Bettys, dos desconcertados Édipos, magrinhos, desnudos, a surrupiarem por entre as cortinas dos banheiros qualquer ato falho, qualquer recaída. Que de André gosto do nome. E da imagem. A ter ataques de epilepsia. André febril, mãos suadas a acariciar por entre as pernas o nome da irmã em sussurro, em quarto escuro, é o trem, é o trem, é Ana, é Ana, aos berros, ao gozo, aos santos! A nós. Repito: André é um belíssimo nome.
E enquanto divago, porque minha cabeça ainda tende a balançar com tantas memórias, me pego novamente a pensar nesse teu convite. Para estar pronta. Que estou muito diferente da última vez que nos vimos. Sem rímel, sem meias-calças pretas, a tez mais envelhecida embora mantenha ainda um corpo reto, mais reto ainda, com a fôrma desses medíocres vestidos brancos, com as cordinhas nas costas. O cabelo cresceu e muito e anda remendado pelas pontas secas. Mas acho que o Dr. Cohen não vai se incomodar. A minha preocupação é você - sempre você, a me perturbar assim o ritmo, as pálpebras, a iluminar e depois apagar as retinas. Meus joelhos ainda doem e mantêm as cicatrizes que você gostava tanto. Vou deixá-los à mostra, com um vestido que lhes permite total liberdade. Ansiedade que não combina com o rosa chá desse meu vestido que escolhi para você. Com cores nas maçãs, cabelos um pouco presos, um belo par de sapatos baixinhos, dedos à mostra, coral na unhas - e confesso, ainda algumas metáforas escondidas no fundo falso da bolsa - a pensar em descontínuo será que ele vai gostar? Que esse teu passeio às avessas, essa tua conversa me arrepia até a medula. Com quantos judeus eu serei capaz de lidar? No mais, vou esperar no último degrau da escada, pelos três dias de invasão, num novo jardim recreativo ou mesmo amarrados por esses mesmos três dias numa cama, por uma única camisa de força. O meu tamanho? O mesmo dessa tua fúria. Um. Inspira. Dois. Expira. Três. Estou pronta, pode vir me buscar.
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Sim senhor, eu aceito seu convite. Vamos nos encontrar.
* Aproveitando também para agradecer publicamente ao Jorge Ferreira por incluir a Dona Estultícia na sua dedicatória em um belo poema:http://www.rasgamortalha.blogspot.com