Quanta ironia! Diante de uma caixa de memórias, com tantas poeiras, pequenas traças, a vislumbrar ainda assim de relance, em canto furtivo de olho, a sala ainda com teu cheiro, uma cama que parece que nos engoliu num breve espaço [novamente] de três dias. E se pensarmos bem, não existe mesmo grandes distâncias entre aquele e esse lugar, a não ser apenas pela estrutura com mais tinta, mais cuidado na limpeza, sem aparentes invasões em massa. Em prédio alto, com soleira e vasos de coisas verdes na porta, tudo fica mais bonito, mais poético. E a queda... bem a queda é quase certa quando se tem a ilusão de que aqui tudo tem começo, meio e nem tanto fim. Afirmar que isso aqui tem modos de vida pode ser algo tão questionável, como sem qualquer fundamento. E ninguém é tão alheio, ninguém é tão pertinente. Ninguém é tão são que possa culpar o outro, desaparecer, sumir. Nem você. A me designar palavras já não tão mais confusas, mas que beiram à mentira. Como se essa fosse a única maneira de me poupar de um certo desvio, de uma dor, de uma patologia. Como se eu, embora aparentemente de alta, não pudesse lidar com as tuas criancices, tuas dislexias, tuas falsas crises. Como se aqui, nesse lugar que eu chamo de casa, faltasse sol, faltasse sossego, faltasse ar, não tivesse água. Arrumei tudo isso para você e não bastou. Nunca basta. E pensando nessas coisas todas, que um cotidiano me apavora. Um cotidiano que me fez levar o lixo para fora e dar com a cara bem na porta da frente, número 33 na porta e logo abaixo uma folha pregada com fita crepe do lado de fora. Li toda, a seco. Porque nela estava ali todas as histórias. A dessa moça, a minha, a de gentes que não querem mais voltar para aquele lugar onde os muros são altos, os frascos são nocivos. De gentes que ao contrário de você, agem como gentes. Com tudo que isso implica. E confesso, que ao terminar de ler esse atestado dessa moça desconhecida, me deu vontade de sentar do lado de fora daquela porta e ficar quietinha, quietinha, quietinha....
ATESTADO DE ÓBITO
Não me venha com desculpas ou choros repentinos. Não me venha com lembranças acovardadas pelos maus costumes e pelos hábitos infalíveis. Não me faça rir por meios escusos e tampouco me envolva nos teus destinos. Será que não vê que tudo perdeu-se de vez? Será que não consegue sentir sequer uma ponta de piedade? São moribundos os que ajoelham-se diante das latrinas. São pregadores de uma fé que não existe, que nunca será escrita. Mas guarda esse atestado que fiz pra ti. Guarda como prova da tua força e da minha fraqueza. Lembrança de alguém que sucumbiu à própria existência. Pensei em te mandar flores frescas, mas lembrei que morreriam na certa, como tudo que os teus olhos pousam. Não por querer, mas por serem auto-suficientes, por possuírem uma destreza que por certo eu invejaria. Digo assim no passado, porque como pode ver, já não sou mais a mesma. Estou afundada no visgo dos meus medos, no que não consegui conter. Me curvei diante do abandono dos teus agudos e dos teus graves, da sonoridade dos teus gemidos e da ausência das tuas palavras. A casa guarda no amputar de cada coisa, qualquer migalha, qualquer resquício da tua passagem. A culpa não é tua. É minha, por carregar dentro de mim um pequeno mortuário, um desatino, uma frustração, um pesar, uma correnteza... Não sei ao certo quando comecei a morrer. Você saberia dizer?