sexta-feira, novembro 11, 2005 ---

(...) QUE A FELICIDADE É LOGO ALI



Como é mesmo ser eu outra vez?

Tanto tempo, tanto consumo de horas a resumir em esporas essas marcas todas aqui nessas trouxas, em malas lacradas, pequenas túmulos de tantas coisas. Que se abrir, escorre, deságua em pés muito longes de estarem sequer mornos. Eu tentando estar aqui como se de fato estivesse, nesse corredor que dá para o que chamam de casa, mas o que é ter uma casa mesmo? E vinte olhos curiosos para saber qual meu número, quem sou eu, e eu agora sou um pouco de você, um pouco lá daquele lugar, nada mais de muros, nem macas, nem cintos, nem duas cores, tropas de choques, muralhas chapiscadas. Isso aqui cheira a gentes, plantas, animais, frutas de cera, amores cotidianos. Isso aqui é fragmento de uma vida inteira, de novo endereço. Será que eu esqueço? Será que existe CURA para tudo aquilo que eu não tenho?

[Tem um olho morto por entre as frestas. E uma moça que se banha assim com a porta entreaberta. Que aperta os olhos na água quente, que cantarola lindamente uma canção fatídica. Tem gorduras nas frestas. Carne esponjosa numa caverna de pêlos. Um fio entre os dentes. Uma escova de cabelo. E tem mãos que tremem num breve espaço de frestas. Festas de comprimidos coloridos. E tem pedaço de bunda na latrina, pau que sobe na cadência de alguma quina. Beirada de cama, perna bamba de mesa, ponta de lençol lambendo o chão. Tem soluços, um meio tórax, uma meia boca, um meio terno, uma meia coxa. Tem ponta de língua, uma letra de vaso chinês. Tem migalhas de pão, osso de frango, bico de bule, fumaça de chaleira. Tem resquício de vela, luz de televisão. Rabo de cachorro em vai-e-vem, ponta de tapete na soleira da porta, vulto de sapato nervoso, um tic-tac de tempo entre as frestas. Tem poeira em vão, no vão dos livros. Tem ais e uis, muitos páras e outros pára não. Tem cumes de suspiros na bandeja, na cama, no fogão. Tem uma trilha de sangue. Nos cantos. Tem melodia e pés que dançam, saias que balançam, chãos que brilham. Unhas sujas nos chinelos, enceradeiras que pouco se revelam e pequenos furtos nas frestas. Gemidos e pruridos, ceras de ouvidos, remelas. Mãos em lugares proibidos, dedos tocando as pequenas arestas. Tem lágrima com pouca resolução. Cartas de despedidas, narizes comprimidos, vestígios de marido, calcinha rosa abandonada embaixo da cama]

Há de se revelar nas frestas, só por entre estas, o que de fato não somos. E antes de fechar essa porta, a nova porta, penso ainda: Como é mesmo ser eu outra vez?

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Ainda sem notícias desse senhor:
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8:54 AM -

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