Papai pediu a conta. Pediu porque queria levar a comida para casa. Porque papai tinha fome, estava com febres e mal podia ficar mais um minuto dentro daquele restaurante. Ele me feria com os olhos. Assim como fazia com a mamãe. E explodia em vômitos, quando chegava em casa. E gritava de dores. Mamãe dizia para eu ir para o quarto e tampar os ouvidos com o travesseiro. E me ensinou a sempre, sempre, engolir o choro.
Ah, mas se ele soubesse da vontade que eu tinha, toda vez que ele a beijava no pescoço, de cuspir-lhe na cara... De dizer-lhe simplesmente que sentia nojo daquela língua em ventosas, do ar quente e pesado que saía daquela boca de dentes amarelados, com cheiros de finos tabacos. De pedir-lhe para ir embora e que a deixasse em paz. Porque ninguém sabia explorar tanto o corpo dela quanto ele. E que depois, ela iria acabar implorando-lhe para que voltasse. Mas eu...bem eu era incapaz de botar em prática tais pensamentos, porque de algum modo papai sabia silenciar as minhas palavras. Uma a uma. E era nos jantares em casa, que cobria-me com seu ar pesado sobre as pálpebras a se renderem diante de tantos pratos e talheres, dos tilintar dos copos e das nossas três mandíbulas a surrupiarem alguns hiatos no breve espaço do silêncio. E então ele pigarreava um pouco, sinal de que a maldita tosse viria noite adentro. E mamãe me apontava o rumo do quarto e eu já sabia que antes da febre viria a sinfonia dos gatos a se estraçalharem diante daquela mesa, sobre à mesa, sem finos tratos e aquelas mãos de papai a levantarem a saia dela, a me cegarem naquela visão fragmentada pelas colunas do mezanino, a prender em mim tanto ar, para que não descobrissem nunca que ainda estava ali, a filha foragida do quarto, a criança febril de raiva calorífica nos olhos.
Que a refeiçãoune a família. Na comunhão dos alimentos, meus olhos pudorentos queriam ir até o fim. Que aquela senhora agora descomposta em postas curvas sobre a branca toalha de mesa, a perde-se entre colares de falsas pérolas, a ter-lhe as nádegas cutucadas por garfos de prata na fúria terna do pai soberano, retorcia na melodia clássica que desafinam as abotoaduras e curvam-se perante as braguilhas de fartas calças, a domesticarem os lábios dela na fala quase muda, mímica dos covardes a tecer em seu pescoço os colares, a sufocar-lhe a mulher-esposa-enfermeira, como se a tosse, a doença fossem culpa dela, só dela, na ânsia, na dor, no delírio, na comoção, que tal ceia me dava nojos, me atiçava desejos, queria matar-lhe agora mesmo com as minhas mãos quentes, velho maldito, velho sacana, paizinho, meu pai querido, que olhos só tinha para aquela mulher que levava a alcunha de mãe solitária em seu calvário de colares de espinhos a esperar quem sabe por socorro, o meu socorro, mas mãezinha você me mandou para o quarto e estou dormindo agora lembra? Sono pesado das meninas que se enterram em travesseiros. E se amanhã você não tiver agüentado tanto peso sozinha, se não conseguir sequer acordar, nunca, nunquinha mesmo, eu prometo mãezinha, prometo engolir o choro.