segunda-feira, novembro 28, 2005 ---

TRÊS MARIAS

- DA SÉRIE "TRAGÉDIAS MÍNIMAS" -


O menino cresceu entre as saias de plissês costuradas com esmero. A feminilidade com seus cheiros, seus braços, amassando-lhe, apalpando-lhe, vasculhando-lhe cada canto do corpo. E não compreendia tantos gritos, tantas farsas, múltiplos disfarces. Era todo o dia uma festa para cada bordado, para cada renda, para cada nova pintura nas faces. O calor das frutas de cores vivas a escorrer por entre os seios em vestígio e a manchar para sempre os vestidos brancos. Os bambolês pelas cinturas, o algodão nas calcinhas. E não bastassem os acordes histéricos das vogais mais tímidas, era à noite que elas vinham em bandos a desvendar-lhe os segredos, a ensinar-lhe toda a crueldade das bocas, todas as regras a sangrar-lhe entre as pernas, dos dedos a roçar onde não deviam, as unhas com esmaltes ainda tímidos a cortar-lhe o tempo. Tempo de brincar no quintal solitário. Tempo de fazer arapucas para passarinhos.

Tempo de aprender que o amor é ferino. Amor de irmãs. Amor às pressas. Que ensina a divisão de defeituosa aritmética onde isso é aquilo sem vice-versa. Que menino macho não tem tempo de desfrutar o entendimento dos pares dos sapatos, das cores das fitas. Menino macho serve para bancar a boneca sem busto ainda, a espaçar as pernas, a esticar braços de gravetos, enquanto ali mesmo alinhavavam anseios de meninas, moças e donzelas, ponto-a-ponto de frágeis tecidos a construir outras formas nos pés da mãe, a recostar no pedal da máquina de costura o mormaço dos dias, das horas. Sons a se misturarem com as agonias histéricas de uma casa repleta de Marias. De choro reservado apenas às meninas. Que pinica como as pontas das agulhas de costura, da pequena ditadura das anáguas, do ballet revolto dos tules, das sedas finas a rasgarem sonhos.

E o menino tornou-se homem triste, a ter-lhe pregado no corpo a dor costurada pelas mãos de cada irmã, dos olhos maternos a supervisionarem, a ralhar vez ou outra para uma delas: "Aperte esse ponto direito, que esse menino cresce um dia!" E ter o mérito de ser o único a exibir em cada canto da pele a remenda da família de leites fartos, generosidade nas tetas e prenda nos dedos. E cair no mundo - depois de feita a costura - com recomendações nas trouxas de pouca roupa, para trepidar com outros cheiros e sentir-se barata. Para andar em becos e esconder nos guetos um amor impregnado de cheiros conhecidos, familiares. De mofo nas golas, colchetes nas saias, risinhos romanescos, peles alvas ainda sem o desgaste cruel dos passados dias. Um homem acuado por um bicho grotesco. De peles secas. De grandes olhos. Um bicho com memória de menino.


7:59 AM -

Arquivos