segunda-feira, dezembro 05, 2005 ---

AMOR

- DA SÉRIE "TRAGÉDIAS MÍNIMAS" -



Ela não ouviu o trinco girar na porta. Mesmo que o ponteiro do relógio indicasse o passar da hora. De fato, era mesmo muito tarde para tudo. Que homem foi criado para ser jogado na vala do mundo. Se prender, ele vai embora ou morre no viço. "Tem comida no fogão". Mas isso, ele já sabia. Que era de costume, arroz, feijão, carne batida no martelo, fruta na mesa, leite e verdura na geladeira. Mas dessa vez, não queria saber de comer, que da rua já tinha consumido o suficiente. Pra toda vida.

"Não vai comer?" Não, não ia. Queria conversar. Sobre o quê? Bem o fim daquilo tudo. "Vem aqui, só um pouco". E ela foi, com os ombros apontados para o chão, sinalizando para ele e quem mais quisesse ver que carregar tanto peso dobrava a idade. Jazia no corpo dela cada falha dele, cada preocupação a se instalar nos cantos dos olhos, cada prato, detergente, água sanitária no papel amassado das mãos. Que quando mesmo ela havia secado, quando? Até murchar quieta, toda vez que o dia morria e persistia aflito no ir e vir dele com diferentes cheiros e fragâncias, nas camisas amarrotadas, no hálito sortido de baleiros etílicos. E ela ali sentada na poltrona de desbotada laranja, assim de camisola, chinelos, cheiro de sabonete, era como um quadro que ele - como se ainda fosse menino - tivesse rabiscado, arranhado a pintura, sem notar que a lembrança daquela imagem ainda intacta já não residia mais na memória.

"Já está tarde, você não acha?" Pra doer esse tempo que se perdeu num desleixo, numa manutenção diária de afetos repletos de ausências, de pedidos, de frases embutidas no silêncio, no choro camuflado pela água do chuveiro, das cebolas, das novelas. Para tentar vê-la ainda como era, como queria que ela estivesse naquele exato momento. "Solta esse cabelo, solta...", já passando as mãos naquele elástico tão frouxo, a cabeleira escorrendo por depois dos ombros caídos. "Você está linda, linda". Para ela tentar forçar um sorriso que não lembrava mais como era ser sorriso naquele rosto agora com moldura, para baixar os olhos prevendo maus ventos, ele de frente para ela, tão perto a ajeitar-lhe os cabelos e a lhe dar um beijo demorado na testa.

"Mãe, eu tô indo embora". A ver-lhe boiar os olhos em água turva e nenhuma palavra. "Diz alguma coisa, mãe..." E ver o resto que sobrava dela ir desmanchando enquanto ele dizia: "Eu também estou envelhecendo mãe, entende... Que esse tempo anda comendo a gente, que eu preciso é dar um jeito nessa minha vida. Tanto amigo meu já com filho crescido e eu nessa eira sem beira, que também quero ter família. Chora não mãe, que eu prometo visitar a senhora todo dia, juro aqui na sua frente, é todo dia mesmo, coisa certa, não chora..." Mas ela não se mexia. "Mãe não faz assim..." E a mão dela a adquirir força segurando, implorando pras mãos dele, enquanto o resto do corpo ia protelando de mansinho. E ele a se embrenhar por entre as pernas dela, a cabeça procurando abrigo naquele cheiro conhecido, de sabonete, cebola, comprimido. A se render sem forças, num soluço abafado pelos tecidos, os dedos dela a lhe fazeres condoídos carinhos. Ele a cantarolar baixinho um lamento, um som, um fado, que não era um fado, que era um samba, que já não era um samba, era um pedido de socorro. E era uma constatação de que ele não ia sair daquele buraco nunca, nunca mais: "Eu quero me esconder debaixo dessa sua saia prá fugir do mundo [soluços]. Pretendo também me embrenhar no emaranhado desses seus cabelos [gemidos]. Preciso transfundir seu sangue pro meu coração que é tão vagabundo. [soluços]. Me deixa te trazer um dengo prá num cafuné fazer os meus apelos..."
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* Disritmia - Martinho da Vila.


8:30 AM -

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