sexta-feira, dezembro 16, 2005 ---


DO AMOR UM TROMPETE E MIL ACORDES
- DA SÉRIE "TRAGÉDIAS MÍNIMAS" -



O piano avisa - tímido ainda - que a canção vai começar. Atenção dobrada nos joelhos que conduzem os pés a marcarem o passo. Mãos que libertam melodias e que dizem ao grande baixo acústico que ele pode entrar em surdina, rouca-camurça, peso que chumba sem doer em nada. Vassouras diminutas a roçarem as nádegas brancas de uma bateria que administra pratos na cozinha sem incomodar os ouvidos. Quebra-cabeça de sons que se encaixam, que jazz é poema truncado. É feliz por ser interpretado. Nas vísceras. Que de fora, um pequeno aglomerado de gentes, não entendem, não sentem, que diabos de sons são aqueles? Para alguns sons de buzinas, motor e gasolina, gritos em restos de feira, fragmentos de vida passageira. Silêncio! O choro de alguém vai reverberar.

Um choro baixinho, bem doído, dança agora entre os instrumentos. Choro metálico corta o vento e se desdobra sem pedir licença, soluça nas baquetas, pede alento às teclas em displicência, e grita para o baixo que já não compreende tanta amargura, que esse choro é loucura, é pedido de socorro, é tormenta em olhos turvos, grita, esperneia, em sangue latino, fogo crispado nas ventas, trompete desconsolado, implorando aos músicos que esperem a melodia, que não abandonem a serventia do sopro de notas tontas.

Um amor às pressas não se despreza assim. Que Elisa era o nome dela, a ter entre vestidos de cores claras, amores em cores quentes a arrebatar-lhe a pele. Que músico experiente também era capaz de amar cada acorde naquele corpo que tremia como os instrumentos. Hálito de cactos a inspirar sons nas janelas. Todas as músicas passaram a ser para ela. Em serenatas contínuas, febris e doentes. Que de amor Elisa agora era a sua música, a turnê que esperasse um pouco, quem sabe voltava um dia, não podia, não queria deixar Elisa ali sozinha, sem trompete, sem melodia. Podem ir que um dia voltava aos palcos com ela. E foram. A banda e Elisa, que não agüentou todo dia aquele maldito som de trompete. Que no começo achava graça, mas não queria ter para sempre aquele som no coração, na casa, na cabeça.

A banda perde o rumo. A platéia perde a rima. Que sons são aqueles? alguém grita. Que não compreendem que naquele banco de praça, um homem sozinho, sem orquestra, sem nada, dança com as mãos pelo corpo, sopra o ar com assombro, cospe da boca cheia mais que um quarteto, que ele deixou um dia. Para ficar com uma mulher chamada Elisa. Para chorar em praça pública um amor que leva à loucura. Pra carregar dentro dele, só dele, o peso, a dor e a ausência de uma banda inteira.

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Conto livremente inspirado em uma história de amor contada pelo músico colombiano, Antonio Arnedo durante uma apresentação em São Paulo.


6:27 AM -

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