No limiar entre o céu e o inferno, há uma linha invisível na beira da razão. Pedra lançada, números no chão, um pé pererê recrutado pela sorte das brincadeiras [5]. É tudo ilusão. Na linha invisível, dirigível é instrumento de terceiros. Manipulação. Do volante. Em transe, a terra dorme. Z Z Z Fugiu das apnéias e escapou. Ilesa. Um sorinho assim em veia de criança, que desmaia por qualquer coisa é quase nada, um beliscão levinho, dói não, dói não, dói não... Pálpebras a caírem com pesos de chumbinhos. Um dia passa, os doutores diziam. Que nada tinha na cabeça, coração, nem pulmão. Criança que desmaia quer mesmo é chamar a atenção. Precisa de um animal de estimação. Um cão pretinho, a abanar o rabo, a esperar toda vez que sai, toda vez que chega. E assim foi. Mais ou menos. Que o cão tinha nome estranho. A menina o batizou de Cerebelo. O cão com paralisia nas patas traseiras e que saltitava como os coelhos. E comia cebolas. Cruas. Queriam levá-lo embora, não batia bem da cabeça o pobre, mas ela não deixou. Menina tola, o pai dizia. Mas ela não tinha ouvidos para os queixumes do pai. E passou a viver só com Cerebelo, o cão na coleira fadado a dormir sentado, na vigília constante dos sonos assombrosos de criança. Que não podia deitar nunca, que o comprimento da corrente pesada não permitia tal desfrute. Caso o fizesse, o enforcamento seria lento e certo. E ele sabia.
Que a chave do cadeado ficava nas mãos do pai e selar o destino alheio. Que ela, desde tão cedo coloria as pálpebras de vermelho fresco. E todo dia piscava para Cerebelo. A dançar e fazer caretas na diversão dos pequenos bobos da corte, bolas no nariz, caretas de palhaços que brincam de felicidade. E ele abanava o rabo em gratidão desmedida, embora a boca já apontasse sinais de mar-espuma-branca. Cólera dos guardiões a arrebatar-lhe os pêlos, nítidos ataques de fúria. Depois era calmaria em melodia triste, focinho choroso implorando pelas pontas dos dedinhos a dançarem bailarinos, todos lindos, ela rindo, no delírio da compreensão ilógica da cumplicidade.
E eram surtos noite e dia, que isso cansa, que de vigilância ela dali em diante teria que cuidar sozinha. Para brincar de amarelinhas. Entre o céu e o inferno. E numa noite, bem de noitinha mesmo, o cão das poucas pernas adormecia lento, a optar pelo estado horizontal das forcas, olhar atento dentro dos olhos dela, a REM(AR) na morosidade das águas turvas dos olhinhos de menina tola, que mais tarde assinaria com a alcunha de uma dona alguns desatinos e todas as suas escolhas. Todas.