quinta-feira, fevereiro 23, 2006 ---

CARNAVAL I



para Luís Manoel Siqueira



Na farra derradeira das veias enlouquecidas, um tum-tum-tum dá o tom da batida. Tiro ao alvo bem no centro da bateria. Dor ou histeria, alegria é alegoria para os que se atrevem a morrer de amores. Cremados, eles serão apenas cinzas.



Basta você pedir que eu topo. Tudo. Assim, sem usar qualquer indício cerebral. Que eu tiro meu grande músculo do varal que anda lá a ressecar as artérias, a estancar os grossos líquidos. Tiro sem nenhuma culpa os pregadores a lhes apertar as arestas. Um a um para a sua vasta coleção. Na cesta vazada a balançar contra a ventania. E basta você dizer sim para que eu remende todos os meus sonhos antigos. Aqueles que a memória fez questão de engolir. Só basta isso, e eu começo a encomendar aqueles sóis que você gosta tanto, por tempo indeterminado. Com cheiro de amaciante em tempo de boas colheitas. Para esticar nossos lençóis grandes e contínuos. E nos sentarmos em cadeiras de plástico enquanto o tempo retoma o riso dos nossos moleques, a correr sem travas, sem arreios, sem desculpas ou meios-termos.

Basta você me encher de mercúrio para que eu viva nessa normalidade invejável. A desfrutar dos seus pêlos e peles em mudança de cor e textura. Mãos de papel até nos tornarmos uvas. A recolher os nossos dejetos, com o cuidado de quem ama os pequenos restos, de quem consente assim olhar o rebanho. Um olho em banho-maria, outro atento à cria. Para valer de fato esse fingir que é dor completamente. Que a felicidade fantasia-se todo dia. Basta você ligar a vitrola que eu choro samba, chamo a vizinhança, ensaio a colombina de um amor só. Dou alforria para esse meu corpo cansado, troco meu zelo por esculacho, faço fita, boto fita, crio laço, tomo um pileque nos seus braços, viro casta, viro traça nesse seu redemoinho de papéis avulsos.

Bastam algumas mentiras amenas para que eu me complete nesse seu desenho de retas e curvas a perderem a geometria diante da cicatriz no canto esquerdo da sua boca. Deixo as armas, guardo as facas, acendo velas, faço novenas, rezo duas dezenas e salto bem no meio do seu quintal. Em silêncio. Piso manso, rego as plantas, faço acordo com o sono, pago tudo em dia, hipoteco, dou garantia. Basta você dizer que quer passar o resto dos seus dias comigo para que eu passe em casa, faça as malas, me despeça dos amigos e desfile contigo bem na beira de um precipício. Até o próximo carnaval.


11:42 AM -

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