quinta-feira, fevereiro 16, 2006 ---

(IV)
- FECHANDO A SÉRIE "OS CORDEIROS" -



PARALELOS

Saíram com o dia já começado, o sol estalando lá fora e um barulho não muito diferente da noite que se passara. Ele a beijou demoradamente e despediu-se sem muita convicção. Ambos sabiam que aquilo era um fim retórico, uma ficção construída a base de álcool e desejo. Ele levava o cheiro dela impregnado em suas narinas. Um cheiro de gozo purificado pelos atos impuros, pelas condições extremas. Havia sim tirado dela um pouco do que faltava nele.

Saíram cedo de casa, antes do sol estalar lá fora, como havia de se esperar. Tinha prometido ao menino que o levaria para comprar o tal brinquedo. "Está bem, assim que a loja abrir", dizia sempre que era questionada. Aproveitaria para ver umas promoções e quem sabe comprar algo novo para a casa. Preferiu deixar o carro em um estacionamento e ir caminhando a fim de melhor se locomoverem.


INVERSOS

Dentro do táxi a caminho para casa, ela recostou a cabeça no banco e fechou os olhos na tentativa de prolongar o momento em que estivera sob cativeiro. Na verdade não fora obrigada a nada, mas o quarto guardava a segurança dos presos e abrigava leis que somente eles entenderiam. Sentira as dores causadas pelos dentes dele na parte interna das coxas e na altura das costelas. Uma sirene soou dentro do seu ouvido, obrigando-a a esquecer por alguns segundos a dor permitida. O motorista desacelerou um pouco e ela ainda pôde ver uma ambulância socorrendo um garoto, uma mulher estática com um vestido vermelho e uma aglomeração em volta. Voltou a fechar os olhos e só os abriu quando o carro parou em frente ao seu prédio.

O dia seguinte seria marcado por três noites de insônia, uma foto de um menino ensangüentado após um atropelamento - retirada de um desses jornais sensacionalistas - e os cordeiros retornando para casa.


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OS CORDEIROS

ELE, um fotógrafo bem-sucedido, 35 anos, casado pela segunda vez há cinco. Criado na cidade de São Paulo, onde foi adotado por uma família residente do Bairro Pinheiros. Não conheceu os pais biológicos. Apenas soubera que o pai era desconhecido e que a mãe era uma moça muito jovem. Carrega em sua bagagem profissional trabalhos premiados e uma vida pessoal repleta de erros e pequenos acertos. Fumante convicto sofre de profundas insônias, consumidor de ansiolíticos, uísques e anfetaminas. É ainda freqüentador assíduo de boates de procedência duvidosa, colocando olhos clínicos sobre tudo que observa. Fotografa as perdas alheias e as guarda para si num acúmulo inesgotável de sofrimentos. Casou-se pela primeira vez aos vinte e quatro anos e separou-se três anos depois, após repetidas tentativas de fidelidade. Conheceu a atual esposa, uma repórter do caderno de Cultura em uma dessas entrevistas coletivas. Vai ser pai pela primeira vez daqui a oito meses.

ELE, filho único, 5 anos de idade. Criado na cidade de São Paulo, onde vive
com seus
pais no bairro de Higienópolis. É considerado pela psicóloga uma criança hiper ativa, com dificuldades de concentração e uma necessidade constante de ser o centro das atenções. Nasceu de parto de cesariana, sem complicações, 3,7 kg. Mamou no peito até os oito meses, seios fartos de leite. O pai distribuiu cigarros, comprou camisa do São Paulo, sorria em meio aos corredores, enquanto a mãe deixava para o marido todo o entusiasmo. Um menino que só berrava quando estava com fome.


OS CERNES

ELA, recém formada na Escola de Belas Artes, 25 anos. Nascida em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, mudou-se para a capital há seis anos. Trabalha como web designer, mas a sua paixão é a fotografia. Atreve-se como fotógrafa vez ou outra em exposições de amigos, ou mesmo fazendo pequenos trabalhos para revistas específicas. É colecionadora de fotos de jornais sensacionalistas. Viveu por dois anos com um médico legista um amor mesclado por intermináveis discussões, incompatibilidade de horários e uma intensa relação sexual. Nunca quis ser mãe, contestando o desejo do outro que decidiu terminar o namoro seis meses depois. Fumante convicta sofre de profundas insônias, consumidora de ansiolíticos, uísques e anfetaminas. É freqüentadora assídua de boates de procedência duvidosa, colocando olhos cínicos sobre tudo que observa. Solteira há um ano e meio, vive de relações curtas e passageiras. Mora sozinha no bairro de Perdizes, tem dois peixes, um cachorro e uma iguana. Todos de plástico.

ELA, dona-de-casa, 32 anos, casada há sete com um gerente de uma empresa de transportes. Nascida em Araraquara, interior de São Paulo, mudou-se para a capital há onze anos. Formou-se em Administração de Empresas, mas não chegou a exercer a profissão. Gosta das coisas a seu modo, disponibilizando os móveis, escolhendo peças de decoração, trocando a água dos vasos, escolhendo as flores. Mal deixa que a empregada toque em suas coisas, principalmente em objetos de uso pessoal. Sempre quis ser mãe, embora tivesse profundo medo de não atingir os conceitos plenos da maternidade. Temia não responder aos anseios do filho e que pudesse de alguma forma decepcionar o marido. A gravidez, no entanto, foi tranqüila e sem maiores aborrecimentos.


7:06 AM -

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