quinta-feira, março 23, 2006 ---

NUVENS CARREGADAS SOBRE OS DESERTOS


"E o mar gemeu a funda melopéia
À luz feral que a tarde morta instila,
Triste como um soluço de Dalila,
Fria como um crepúsculo da Judéia".

(Soneto / Augusto dos Anjos)



A primeira vez que inundou os olhos na frente de um homem, molhou também as pernas. A urina encharcando a calcinha. Líquido quente a melar os dedos dos pés. Na vitrine viva, ele sorria satisfeito, enquanto o membro novamente enrijecia por entre as pernas. Era a terceira vez que via um homem assim. Na primeira, duas bonecas de olhos espantados. E o conforto da paternidade a despregar as costuras de uma das bonecas que ele ajudara a fazer. Não houve choro. Nem mesmo água em abundância. O gozo era sabedoria apenas permitida ao esforço e sabedoria do pai. Não sentiu dor. Nunca soube o que era isso. Nunca soube sentir coisa alguma. Algumas meninas já nascem mortas por dentro.

Com o segundo não foi diferente. Era um rapaz, ainda que num corpanzil de um homem desajeitado e suculento. Vertera-lhe leite em estremecimento a mudez jovial daquela que era incapaz de emitir qualquer suspiro mesmo que ele se esforçasse entre os lóbulos da orelha, nos recantos femininos que facilmente se ateiam fogo. Mas ela não mexia um milímetro. Pensou em parar, embora o membro procurasse solução de mergulho. A aridez dos terrenos pouco férteis, natureza improdutiva na beleza dos prêmios inalcançáveis. Muralhas da China. Saaras recortando novas geografias. O cheiro morno dele que nada dizia. O deserto sempre foi deserto.

Já com o terceiro, disputava a crueldade do abate. Não tinha modos aquele que a espancava com a simples ausência de tentar tocar-lhe a pele, como os outros faziam. Olhava olhos. Olhava intacto. Tinha calma. Uma calma que lhe doía as faces. Não fazia menção de afundar-lhe mãos, língua, membros. Sentou-se pedra. Nu. Na beira da cama. "Tire a blusa". Ela obedeceu. Olhos mirando os dele. Gelados. Os seios apareciam sem qualquer acessório. "Agora a saia". O fecho do zíper deslizando sobre os trilhos. O tecido escorregando pelas poucas curvas. Um corpo de menina ainda. A calcinha de algodão um pouco frouxa. Alguns pêlos a se esvair pelos cantos. Fez menção de tirá-la, seguida de uma reprovação: "Não, a calcinha não". Ela titubeou um tanto quanto decepcionada. E ficou aguardando novas instruções. Elas não vinham. Os olhos dele a mirarem o corpo dela. Fixos. Calmos. Presos. E ela a sentir uma mudança no corpo, a respiração arredia a levar uma das mãos em direção ao sexo e ele mais uma vez a cortar o silêncio: "Não toque em nada". Mão parada no ar. Não tocou. Não tocaram. Em nada. Prenúncio de chuvas. As pernas dela levemente se afastando. Moles. Perdidas. Nas gelatinas coloridas dos molejos. Ele a pressentir mudança dos ventos. As lágrimas vertendo nos olhos de menina. E uma urina quente a regar os desejos. O homem imóvel com um membro teso. A dizer sem quaisquer travas na língua: "Limpe-se e bote a roupa". Nunca mais o viu nessa vida. Os desertos nunca mais foram os mesmos.


11:54 AM -

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