terça-feira, abril 25, 2006 ---

O ABRIGO



Para meu amigo Marião e aqueles que compartilham dos abrigos antibombas



Você amaria um sujeito com um olho de vidro? Ela disse que a venda nos olhos até o tornava atraente, misterioso. Ele estava completamente bêbado e falou que as pessoas precisam se conhecer até o fundo. Arrancando o olho de vidro, jogou-o dentro da laranjada dela. Disse que se ela bebesse com o olho dentro do copo, ele ficaria apaixonado para sempre. Ela bebeu.

(Romeu e Julieta - Minificções - Sérgio Sant`Anna)





Quando ela o viu, na soleira da porta, sabia que a guerra lá fora havia terminado. Não pelas sujas vestes, nem tampouco pelas botas que denunciavam maus tratos. Mas sim - decididamente sim - porque ele finalmente estava de volta àquela casa. O tempo a devorar alguns anos, a pedir espera, na paciência dos que precisam montar os cavalos, impedir que as pestes devorem seus filhos, que homens se percam no caminho, a levar alguns companheiros nas costas. Um bom soldado sabe lidar com os ferimentos. Um bom soldado nunca se atrasa.

Algumas linhas visíveis no rosto dela. Dizem que a ausência é hábil tecelã a revelar entre os tecidos, cada dia abatido, resquícios de tristeza, números ímpares sobre a mesa. Estava mais magra, mãos assim meio duras, pequenas ataduras a remendar frágeis ossos, sem poder sequer bater continência, ela, que sempre fora um soldado raso de fiel obediência, já não tinha tanta urgência em servi-lo, os pés atados ao chão como quem perde a noção de caminho, que os olhos já não conseguem reconhecer os carinhos, a marca da cachaça, as pistas de traças, oitenta e sete mil e quinhentas e noventa e oito horas, com duas de antecedência, o relógio a contabilizar tanta ausência. O relógio a perder a constância, quando ele a alcança sem qualquer artilharia.

Cercados os braços, os mesmos braços só querem saber daqueles braços. Como se a falta não tivesse razão para existir. Se lá foras as pessoas corriam, os preços subiam e bombas caiam do céu a todo momento, lá dentro - em um breve espaço de tempo - é que certos soldados deixam seus fardos para cuidar de seus ferimentos. Cicatrizes de um tempo de guerra. Ácidas chuvas em dias turbulentos. Salvos aqueles que sabem o momento exato de voltar para casa.


3:48 PM -

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